segunda-feira, 15 de março de 2010

Intrigantes Magias

Um texto de excepcional sensibilidade, onde a autora se coloca no papel de um gato prestes a fazer sua passagem.

Intrigantes Magias

Bia Guterres

De duas coisas tenho certeza: a primeira é que está chegando a hora de Minha Grande Viagem. A segunda, é que este mundo é feito de seres mágicos e imperfeitos.

Durante anos, fui dono de um destes seres e assisti a algumas de suas mágicas. “Ela” poderia ser um felino como eu: magra, ágil e irriquieta. Tentei, algumas vezes, ensinar-lhe a saltar sobre as camas, sobre a mesa de jantar e sobre as almofadas da sala. Não conseguiu. Seu máximo esforço estava em correr atrás de mim, pegar-me, abraçar-me com força e afofar minhas bochechas peludas, “ronronando” carinhos.

Mas o surpreendente é que movimentava coisas e fazia com que vivessem. Em dias de muito calor, quando quase não suportávamos o peso de nossos pêlos, “Ela” colocava suas patas grandes e diferentes sobre um objeto arredondado e fazia que dele saísse uma brisa que alegrava meus bigodes.

Do encosto do sofá da sala, observei sua transformação; seus pêlos da cabeça aumentaram bastante e são castanhos e lisos. Os olhos, cresceram convidativos, sempre incitando-me a participar de alguma brincadeira.

De latas e sacos mágicos , retira nossa comida. É parecida comigo em relação ao alimento: cheira bem, analisa a beleza de seu aspecto e deixa de comer, se não está satisfeita. Ah! Mas iogurtes, chocolates e outros creminhos, sempre nos agradaram.

“Ela” tem uma voz, geralmente, baixa e suave. Porém, ás vezes, grita esganiçadamente. Percebo que é o que chamam de cantar. Nem sempre é agradável.

Com seu poder, faz que outros seres fiquem dentro de algumas caixinhas e cantem para ela.

Diversas vezes, tentei que cantassem para mim. Subi na caixa, tateei sobre sua superfície com minhas patas, cheirei, alisei, funguei e lambi. Nada. Só as patas poderosas d’Ela tinham efeito sobre aquela e outras caixas da casa.

Amanhã, finalmente vou reencontrar outros felinos que passaram pelas minhas sete vidas. Vou contar-lhes o que vivi, de como fui feliz e como ajudei alguns seres mágicos que tive. Vou falar d’Ela, de sua alegria, de sua rapidez dentro da casa, da bagunça de seu quarto, com tênis pelo chão, das muitas vezes em que a consolei deixando que me alisasse, apertasse, beijasse e colocasse , em meu pêlo, um pouco da água que, em alguns momentos, escorria de seus olhos. Fui um bom enxugador e “Ela”, uma boa companheira.

Durante várias noites, entoei meu felino-canto mais glorioso para que as marcas de meu miado ficassem impregnadas nas paredes de sua memória. Foi divertido pois, percebia que “Ela” queria dormir; vinha correndo atrás de mim e dizia para que eu parasse com minha Arte. Em vão.

Aprendi sobre suas magias mas tenho a certeza de ter-lhe ensinado a não aceitar qualquer alimento , só porque tem fome, a limpar bem as patas depois das refeições, manter o pêlo limpo, observar onde vai saltar, descobrir quem são seus amigos verdadeiros e lambê-los, ocasionalmente, ter paciência e esperar o momento certo e arranhar para se defender. Até amanhã, espero que ela entenda que o mais importante não são as formas de partir mas , sim, o trajeto percorrido no tempo em que permanecemos juntos; todas as alegrias partilhadas, as aventuras, os sustos, os segredos e as brincadeiras.

Sei que estará cada vez melhor, mesmo sendo imperfeita e confusa como todos os não-felinos que conheci.

Todavia, a mais intrigante magia se refere ao sentimento que os seres chamam de Amor. Talvez não consiga descrevê-lo bem aos meus companheiros mas, tenho a certeza de que, durante todo o tempo em que vivi naquela casa fui encharcado por este poder mágico que vinha do pêlo, dos olhos, das patas e da voz de quem sempre foi minha amiga.

Amanhã, miando feliz com meus amigos de todas as vidas , com certeza, terei a sensação boa de dever cumprido e de muita saudade.

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=^o^=